Uma história de coragem e valores humanos
Em fevereiro de 2015, ignorando os conselhos dos mais pessimistas, casaram-se.
E pouco depois chegou a chamada: Tiago não tinha sido colocado em Díli, mas a AICEP ia abrir escritório em Bissau e precisavam dele lá. Formada em História de Arte e Museologia, Patrícia até tinha acabado de começar num emprego, mas nem hesitou. “Disseram-me que tinha 24 a 48 horas para responder.
Eu falei com a minha mulher e dez minutos depois liguei a dizer que sim”, conta Tiago.
Enquanto Betinha faz um desenho – um vestido da Elsa, claro -, Patrícia recorda aqueles primeiros tempos. E nem hesita na data em que chegaram a Bissau: 23 de agosto de 2015. Tiago já tinha alguma experiência de África, muito graças à Karingana, mas só uma coincidência fez que a estreia de Patrícia no continente tivesse acontecido em Bissau na passagem do ano, com o então namorado. “Foi um grande choque”, admite esta lisboeta de nascimento, criada entre Almada e a Costa de Caparica, e que confessa ter o coração na Margem Sul. Nem o curso na universidade, onde as cadeiras de arte africana não existiam, nem a experiência profissional, entre os trabalhos a recibos verdes, as explicações e depois a colaboração na área da cultura numa autarquia, a tinham preparado para o que a esperava.
“Eu disse logo que ia com o Tiago [para Bissau]. Eram poucos meses de casamento, acho que acabava logo em divórcio.”
Mas “eu disse logo que ia com o Tiago. Não o ia deixar sozinho porque também não gostaria que me deixassem sozinha. Eram poucos meses de casamento, acho que acabava logo em divórcio”, ri-se com um olhar cúmplice para o marido. A primeira impressão de Bissau fora boa. “Tinha-me ficado no coração o calor daquelas pessoas. E o cheiro de que toda a gente me falava, existe mesmo”, exclama, enquanto admite: “Achava que íamos viver assim uma coisa idílica, como nos filmes.”
Mas não foi bem assim. E é Tiago quem recorda: “Estes quatro anos deram-nos uma perspetiva de vida completamente diferente.
O povo guineense é fabuloso. Têm muitos problemas, mas são pessoas muito solidárias e sobreviventes, fazem o que for necessário para sobreviver”, explica enquanto ajuda a filha a segurar a folha que insiste em voar com o vento desta tarde lisboeta.
Patrícia não podia estar mais de acordo. Mas talvez por ter menos experiência de África, admite ter sentido mais o choque cultural, sobretudo o contacto direto com a miséria nas ruas. “Depois vamos começando a gostar” das pessoas, do país. E enquanto o marido ia todos os dias para o escritório da AICEP, Patrícia também arranjou ocupação. “Comecei a colaborar com a Universidade Católica de Bissau, dando aulas aos alunos de Ciências da Educação. E eles iam-me convidando para visitar os jardins-de-infância deles nos bairros de Bissau.”
Foi ali que Patrícia se apaixonou pelas crianças: “Comecei a ver as crianças e a forma como eles trabalham com elas, e comecei a apaixonar-me.”
Budista há 15 anos, Patrícia estava impedida de praticar abertamente a sua religião em Bissau por questões de segurança, mas foi ali que viu postos em práticas os valores humanistas que até então eram sobretudo teóricos. “Todos os dias quando ia no carro – não conseguia andar a pé, faz mesmo muito calor na Guiné e muita humidade -, ia sempre a olhar pela janela, a observar. Via a feira do Bandim, as vendedoras na rua, as crianças nas costas nos bambarans, as que passavam a correr. E aqueles sorrisos… Estes sorrisos são uma coisa! Já tinha visto em Timor e depois vi em Bissau.”
“Sempre quisemos ser pais”
A vida ia decorrendo entre o trabalho do Tiago, as aulas e as visitas aos infantários de Patrícia, os jantares com amigos, intercalados com umas temporadas em Portugal. Mas havia algo que não corria como Patrícia e Tiago queriam. “Nós sempre quisemos ser pais – não sabemos porque é que não conseguimos, não há razões claras -, e a certa altura eu comecei a ficar deprimida e triste. Houve aquele boom das gravidezes entre os amigos”, explica Patrícia.
Mas garante que não foi o “vazio de não ser mãe” que a levou a apaixonar-se pelas crianças do Orfanato Lar Bethel. Para a historiadora de arte foi mais um pôr em prática dos ensinamentos budistas. “Apaixonei-me por dois gémeos. Eles ainda eram bebés, agora já devem estar crescidos. Olhei para eles e pensei: gostava que fossem meus filhos. Estava sentada no pátio do lar, numa cadeira, com aquele calor a cair sobre mim, e pensei: gostava de os adotar. E aquilo foi ficando na minha cabeça. Isto foi em 2016.”
“Apaixonei-me por dois gémeos. Eles ainda eram bebés, agora já devem estar crescidos. Olhei para eles e pensei: gostava que fossem meus filhos.”
A conversa como marido chegou no Natal, mas Tiago demorou algum tempo a ponderar o assunto. “Era uma grande responsabilidade. Era uma decisão que tinha de ser muito, muito ponderada”, conta o delegado da AICEP. Postas de lado outras opções, ignoradas algumas opiniões em contrário, Patrícia e Tiago acabaram mesmo por decidir avançar.
“Foi uma decisão que demorou cerca de um ano. Ponderei, e houve três motivos que me levaram a dizer que sim. A razão principal era que queríamos muito ter filhos. Mas houve outros dois momentos-chave. Um deles foi uma pessoa amiga aqui em Portugal que nos disse que tinha tido oportunidade de adotar uma criança, não o fez e ficou para sempre arrependida. O outro foi o facto de gostarmos tanto da Guiné-Bissau, de sentirmos que o nosso coração estava na Guiné-Bissau”, diz Tiago.
Depois de algumas tentativas, primeiro com os gémeos do Lar Bethel, depois com um menino mais velho, o momento que mudaria a vida da Patrícia e do Tiago chegou no hospital de Bor. “Nós temos uma grande amiga, a Manuela Pimenta, que é farmacêutica. O pai dela, o Dr. Manuel Pimenta, além de ter estado no ultramar tem um laboratório de análises clínicas no bairro de Bor, o local onde a Betinha tinha vivido e onde Binda, a mãe da Betinha, está a tratar-se. É portadora de VIH. O bebé, o irmãozinho mais novo da Betinha, o Cristiano, já não tem VIH, mas a amamentação não pode ser feita com leite materno”, conta Patrícia, interrompida pela chegada dos pastéis de nata.
“Um gesto de amor da mãe”
Talvez um olhar em direção à menina leve Patrícia a explicar: “A Betinha sabe tudo, sempre lhe contámos de onde vem.” E enquanto a filha vai comendo o pastel, conta como estava em casa, no bairro da Cooperação Portuguesa, onde viviam em Bissau, quando recebeu o telefonema de Manuela. “Ela diz-me: ‘Vem já para aqui, tenho aqui uma mãe que precisa de apoio com a filha.’ Eu não percebi e ela insistiu: ‘Não estás a perceber, ela precisa que alguém cuide da filha: uma adoção.'”
Patrícia foi.
Mas enquanto esperava pelo motorista surgiram as dúvidas. O que ia lá fazer? Mal entrou no hospital, todas elas se dissiparam. “Abrem a porta e vejo a Binda e a Betinha, que tinha na altura 3 anos. A mãe falou comigo e pediu-me, em crioulo (eu não falo, mas percebo um bocadinho), se eu podia tomar conta da filha.”
“Foi tão forte ver uma mãe pedir a outra mulher para tomar conta de um filho.”
“Foi tão forte ver uma mãe pedir a outra mulher para tomar conta de um filho”, que Patrícia admite não ter tido, na altura, a noção exata do que significava. Mas o impacto foi tal que Patrícia e Tiago confessam ter tido um momento de resistência. “Psicologicamente para nós foi um choque a mãe entregar a filha. Está viva. Já não havia pai, mas a mãe está viva. Mexeu com a nossa consciência. Mas ao mesmo tempo interpretámos aquele pedido não como um gesto de necessidade mas como um gesto de amor da mãe”, diz Tiago.
E o facto de Manuela Pimenta e o hospital de Bor, que ela e o pai muito têm ajudado, estarem envolvidos também acabou por lhes dar mais segurança.
Presente de Natal em Dakar
A verdade é que se passou um ano. Até que um dia a família da Betinha contactou Júlio, o motorista de Patrícia e Tiago. “O Júlio, que ainda é nosso motorista no Senegal, era quase vizinho da família. Ele falou comigo e disse que a família da Betinha queria saber como é que me podia contactar.” Patrícia não hesitou, entrou no carro e seguiu para Bor. ” Vi a Binda, com um grande sorriso. É uma mulher lindíssima que deve ter 30 e poucos anos. Vi a Betinha, muito envergonhada, os primos. Uma casa típica de um bairro de Bissau. Foram buscar uma cadeira de plástico para eu me sentar”, recorda. “E de repente a família sentou-se toda no beiral da casa, o Júlio era importante para traduzir. Porque eu não percebia bem nem o crioulo nem o dialeto deles, que são de etnia balanta. E tudo o que vi naqueles olhares, naqueles rostos, sobretudo no da mãe, foi uma grande compaixão.”
Ali, sentada na cadeira de plástico, com os porcos e as galinhas a passar, Patrícia soube: “Vi o olhar compassivo da mãe e os familiares a perguntar qual tinha sido a nossa decisão. E disse: sim, vamos avançar.”
Envergonhada, Betinha escondeu-se na altura. Mas, passados dois anos, é uma menina extrovertida a que vai comendo o segundo pastel de nata junto à Torre de Belém. Durante um ano, Patrícia e Tiago foram visitando Betinha em casa da mãe, mas o processo para adoção ainda demorou um ano a avançar.
“Foi um processo natural, não estávamos pressionados”, garante Tiago, antes de acrescentar: “Nunca nos pediram nada e nós nunca demos nada. Há processos destes em que é pedido dinheiro, neste nunca. Eles tiveram uma atitude digna e dignificante.”
Entretanto mudaram-se para o Senegal, com Tiago a ser colocado em Dakar pela AICEP. Já instalados, em maio de 2019, Patrícia e Tiago avançam com o processo na justiça. “A tutela foi muito rápida”, contam. De facto, Betinha chegou a casa a 23 de dezembro. “Ficou lá, a passar o Natal connosco. Foi a primeira vez que passámos o Natal fora de Portugal. Foi estranho, foi diferente”, diz Patrícia.
Pelo meio, foi preciso contar às famílias que iam adotar uma menina guineense. Patrícia admite que foi mais fácil para ela. Mais nova de três irmãos e com quatro sobrinhos, a historiadora de arte garante que o pai, um italiano que passou pela II Guerra Mundial e veio trabalhar para Portugal, e a mãe tiveram a mente aberta. “Preconceitos foi coisa que nunca esteve presente na nossa vida nem na nossa educação. Eu contei-lhes, ficaram felizes e disseram: ‘Avança, vai correr bem!'”
Para Tiago, a conversa com a mãe também não foi difícil. “A família da minha mãe passou quase toda por África, quase todos os irmãos. Uns com mais responsabilidades, como o meu tio, que esteve em Angola e organizou a ponte aérea para os retornados. Ou outro meu tio que foi médico em Moçambique. Portanto, a minha mãe aceitou com grande naturalidade.” Já o pai: “O meu pai foi diferente, por uma razão muito simples: no dia em que estávamos para ir embora é que lhe dissemos que íamos adotar uma criança. Em vez de termos dito de forma mais suave, foi no último dia”, diz com o riso de quem sabe que já tudo isso foi ultrapassado. “Agora a Betinha foi muito bem aceite. Todos gostaram muito dela”, garante. Tanto os sogros, mais “tecnológicos”, que já tinham visto a neta por videochamada, como os pais, a quem vai comprar um telemóvel mais moderno para o poderem passar a fazer também.
“Mas é de cor? Sim, é preta da Guiné”
Farta de tanta conversa, Betinha vai refugiar-se no colo da mãe. Longe vão os tempos da menina que só falava crioulo e teve de aprender a comer de faca e garfo. “Começámos lentamente a falar português, nas brincadeiras, a ver televisão, desenhos animados”, explica Patrícia, ainda hoje surpreendida com a capacidade de adaptação da menina. “Ela não chorava. À noite tinha alguma resistência, tinha medo, não sabia onde estava. Nas primeiras noites ainda dormiu connosco. Ainda perguntava um pouco pela mãe e pelo irmão, o bebé. Eu fui explicando por que estava connosco. Vou sempre explicar-lhe de onde ela vem. Ela tem a mãe viva, afinal.”
Hoje, “é muito raro ela chorar, ou ficar doente. É muito forte. Já tem a sua personalidade. Mas sabe respeitar o espaço do pai, o espaço dela”, afirma. “A adaptação dela foi extraordinária. Foi melhor do que alguma vez pensaríamos. Estamos muito felizes. Há uma correspondência de amor de lado a lado”, confirma Tiago.
Com a pandemia a tornar o regresso à escola uma incógnita, Patrícia e Tiago admitem que não sabem se Betinha irá logo para o pré-escolar quando regressarem a Dakar. Preocupações que aprenderam a ter nesta aprendizagem diária do que é serem pais. “A minha vida mudou radicalmente. Agora tenho uma criança que está sob a minha responsabilidade.
É de repente acordar uma manhã a pensar “Onde é que ela está? Será que está tudo bem?” E perceber que está a crescer um amor que não sabemos de onde vem. E que ultrapassa tudo. A mim não me interessa nada se ela é guineense, porque muitas pessoas me perguntam: ‘Então mas é de cor?’ E eu respondo que sim, é preta da Guiné. Porque é mesmo preta da Guiné.”
Nota do Director
A presente publicação é uma cópia da edição do DN a quem agradecemos o trabalho a que não podemos ficar alheios, também com orgulho.
A Dra. Patricia é a nossa Directora para África e escreve sempre que possível sem custos para o jornal, mantendo-nos actualizados sobre este Continente e, especialmente sobre a Guiné-Bissau que ambos amamos.