Numa noite de insónia, José Luís Jorge decidiu finalmente dar corpo a um sonho antigo. Um desafio – físico e mental – que se tornou numa aventura, que foi afinal (mais um) projeto de vida, a que chamou “Linha de Fronteira”: percorrer a pé a mais antiga fronteira da Europa, entre Espanha e Portugal, num total de 1400 km.
A ideia marinava há anos na cabeça deste repórter fotográfico de profissão, viajante de paixão. Já escreveu e fotografou para revistas como a Volta ao Mundo ou a Up (da TAP), porque o prazer de viajar e descobrir histórias, pessoas e lugares vive com ele. Desta vez, tratava-se de reproduzir nos tempos atuais um feito descrito por Duarte de Armas no Livro das Fortalezas, um manuscrito quinhentista no qual se inspirou. Não foi o único, nem o primeiro. “Sabia que há uns anos uma senhora o tinha feito. Mas não da mesma forma que o fiz”, conta ao DN José Luís Jorge, regressado da etapa final desta viagem em meados de junho. Refere-se a Isabel Pessôa-Lopes, que em 2012 percorreu as fronteiras continentais marítimas e terrestres. Mas José Luís Jorge tinha um filão: Atravessar por dentro o nosso inverno demográfico”, perceber como vivem essas aldeias onde já não há crianças, nem escolas, só campos de futebol abandonados, terrenos por cultivar e linhas de comboio desativadas.
Mas recuemos até 2020, quando começou a desenhar-se na sua cabeça esta ideia, a que chamou Linha de Fronteira – projeto que pensa verter em livro, agora que terminou a caminhada. Debateu-a primeiro com um amigo de longa data, o jornalista Paulo Moura. Ponderou tudo: os caminhos, a preparação física de que necessitaria, e foi treinando. Até que decidiu que haveria de dividir esta caminhada em três etapas, de modo a cumprir os tais 1400 km andarilhados, desde o Minho à foz do Guadiana.
“Para ser rigoroso, o verdadeiro alvo do meu interesse era a Raia , o espaço contíguo à invisível linha que delimita Portugal e Espanha, definida por cursos de água e por paralelepípedos retos numerados, os marcos de Fronteira, a representação física da ideia de país”, conta ao DN, num almoço-catarse em que revê lugares, pessoas e histórias desses dias, que foram [três] meses. Partiu então a 27 de setembro de 2021, da foz do rio Minho, e fez até Barca d”Alva – no rio Douro, a 29 de outubro. As outras duas etapas ficariam já para este ano – a segunda de 24 de março até 18 abril (de Barca d”Alva à Barragem de Cedilho) e finalmente a terceira, de 8 de maio a 8 de junho, entre Cedilho a Foz do Guadiana.
Retrato de um país desertificado
Talvez este caminho estes 1400 km o tenham mudado, enquanto homem. José Luís Jorge carrega na bagagem muitos milhares deles, mas dentro do país profundo nunca se atravessara, desta forma tão afoita. Em Leiria, de onde é natural e mora há 59 anos, ficaram a companheira Emília e os filhos, de 18 e 25 anos. Por onde andou conheceu “muita e boa gente”. “Normalmente procurava ficar nos alojamentos locais das aldeias, exceto nos casos em que não havia, de todo, e aí recorria às juntas de freguesia, por exemplo, Encontrei sempre uma hospitalidade extraordinária”, sublinha, relevando um único caso em que lhe recusaram guarida para estender o saco-cama.
José Luís ia à procura de um país que já não existe, sabe-o bem. Mas foi muito para além disso. Ao princípio, pensou num território periférico, o mais longe de Portugal continental em relação à capital, “durante muito tempo, lugar de confronto e de vigilância, mas também, sobretudo espaço osmótico, permeável a encontros, casamentos transfronteiriços, convivência e solidariedade, oportunidades de comércio legal e ilegal, local de criação de línguas e dialetos, o mirandês, o estremenho, o barranquenho, e outros. Afinal, acabei por descobrir um conjunto de línguas e dialetos que nem sequer imaginava”.
Houve, porém, uma imagem que o marcou profundamente: “há dezenas de escolas primárias fechadas pelas aldeias onde passei. Assim como há campos de futebol ao abandono, e linhas de comboio desativadas. Essas são, para mim, as três notas que mais me ficam, ao fim da viagem, porque são sinal desse inverno demográfico que atravessamos. Eu conversei com imensa gente nas aldeias, com quase todos os presidentes de junta. E as pessoas estão muito preocupadas, seja no Minho ou no Alentejo. Todas têm esta convicção: se nada for feito, há aldeias que dentro de 20 ou 30 anos vão morrer, simplesmente”, afirma.
O fotógrafo foi registando tudo, como seria de esperar. Pelo caminho, estabeleceu uma colaboração com o Jornal do Fundão. As crónicas deram nas vistas e saltaram para os Sinais de Fernando Alves, na TSF. Foi na segunda etapa. Nessa altura, José Luís já se rendera ao Instagram, ele que sempre se mostrara arredio das redes sociais. Afinal, “revelaram-se muito importantes nesta viagem, para ir mostrando o país, mas também para que os amigos soubessem por onde andava”. E andou por muito descampado, também. De resto, uma das dificuldades maiores que enfrentou na viagem aconteceu logo na primeira etapa, em pleno outono, na zona de Chaves, quando se viu de repente cercado por três cães de grande porte. “Eram três “castro laboreiro”, e na aldeia onde pernoitei já me tinham avisado para isso. Tive a sorte de aparecer um carro por ali. Foi mesmo a minha sorte. Por uma vez, senti-me mesmo ameaçado”, recorda. Entretanto, na terceira etapa da viagem, estar-lhe-ia reservado outro desafio gigante para superar: o calor, no sul.
Agora que já passou, José Luís consegue minimizar ambos como superados. Mas no momento “foram duros”. Ali, olhando para as paisagens alentejanas, ficou-lhe outra preocupação: “A aposta na cultura intensiva de oliveira e amendoeira. Este tipo de agricultura é altamente dependente de água e parece-me irracional apostar nela em grande escala quando as alterações climáticas apontam para a escassez de água. É verdade que a oliveira e a amendoeira sempre existiram nesses sítios mas eram cultivadas em regime de sequeiro”, frisa. De resto, lembra que este tipo de agricultura poucas mais-valias traz para as populações locais, “pelo facto de ser altamente mecanizada e carecer de mão de obra”. “Nenhuma pessoa com quem falei nesses lugares estava entusiasmada com este tipo de agricultura”, conclui.
O Padre Fontes e Carlos Brito, encontros memoráveis
Ao longo de todo o caminho José Luís Jorge colecionou encontros improváveis. Foi o caso de Carlos Brito, o antigo deputado comunista, que agora vive em Alcoutim, à beira do Guadiana. Tem quase 90 anos, “mas mantém uma lucidez impressionante. Bati-lhe à porta, apresentei-me, disse quem era, e tivemos uma deliciosa conversa”, relata o fotógrafo ao DN. É que José Luís é genro de um velho conhecido de Brito (já falecido): Kalidás Barreto. Ambos fizeram parte da primeira Assembleia Constituinte – Brito pelo PCP, Kalidás pelo PS.
Antes desse encontro, um outro marcou esta viagem do caminhante. Em Montalegre, tinha intenções já vincadas de conhecer o Padre Fontes, figura bem conhecida. “Avisaram-se que está doente, e que tem dias em que não está bem, por isso era melhor não ir lá a casa. Mas eu ia no meio da aldeia quando o encontrei. Ele viu-me com os dois bastões e foi ele mesmo que se dirigiu a mim. Perguntou-me para onde ia e falámos um pouco”, conta.
Mas a viagem fez-se de muita gente anónima. José Luís não esquecerá a aldeia em Terras de Bouro cujo habitante mais novo tem 35 anos. “É um daqueles casos preocupantes”, reflete. E não se pense que este é o primeiro banho de realidade que leva, neste campo. Como facilmente se percebe, a família da mulher está em Castanheira de Pêra, o concelho do distrito de Leiria mais afetado pelo despovoamento, neste momento onde mora menos gente.
“Percorrer a raia a pé, a raia portuguesa, não enjeitando a possibilidade de por vezes caminhar em Espanha, era projeto que me entusiasmava. Caminhar é um verbo cheio de desafios, exige esforço e determinação mas reserva inúmeras compensações: tudo está próximo, a cada metro: paisagem, pessoas, sons, cheiros, cores; tudo se sente com mais intensidade, calor, frio, medo, inquietações”, enfatiza José Luís Jorge. É por isso que tanta informação e imagem condensada lhe parece suficiente para um livro, que será a próxima etapa do projeto. O que quer dizer que “Linha de Fronteira alimenta-se do passado e do presente, mas vai alimentar-se também do futuro”. Do passado, porque certo dia o fotógrafo descobriu o Livro das Fortalezas, resultado do mando de D. Manuel I a Duarte De Armas para que desenhasse todas as fortalezas do Reino de Portugal edificadas na fronteira, “e logo fiquei entusiasmado com a possibilidade de repetir o itinerário do escudeiro da Casa Real; ” mas, sobretudo, alimenta-se do presente, pois desejava entender o que significa a fronteira, agora que a integração de Portugal e de Espanha na União Europeia permite a livre circulação de pessoas e de mercadorias, mais, desejava observar, perceber o melhor que me fosse possível, como vive essa parte do país tão desconhecida da outra parte, o litoral”. Pelo caminho, atravessou paisagens muito contrastantes entre si, “uma das riquezas de Portugal”, considera. E “além do retrato do país desertificado e comunidades esquecidas, fiquei a par de projetos arrojados e de outros desastrosos, conheci toda a sorte de gente, pessoas comuns, autarcas, empreendedores, charlatães e figuras com destaque Social”. Lá longe, na raia, ficou também uma parte do que o levou a esta viagem: a memória do contrabando. “Cruzei-me com dezenas de contrabandistas, pessoas que faziam desse o seu modo de vida, até aos anos 90”, conta, referindo-se a pessoas de todas as idades e condições sociais. Muito do que viu e ouviu está registado em mais de 6000 fotografias e 80 vídeos. Parte dessa memória há de constar do livro. Sem pressa, como tudo na (sua) vida.