Nota da Direcção
Com a devida vénia ao nosso Colega Jornal de Oleiros, pela importância do momento e pelos diferentes “tabuleiros ” onde se joga agora a Guerra na Ucrânia, ainda pelo importante interesse que as mesmas Crónicas do Professor Mendo Henriques suscitam, as duas direcções acordaram publicar as mesmas nos dois jornais, correspondendo ao interesse que nos tem sido demonstrado e aqui agradecemos.
Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXXI
28 de novembro 2022
. O único modo de o povo russo ganhar a guerra é Putin perdê-la.
Ao fim de mais de nove meses da invasão da Ucrânia, acumulam-se os acontecimentos da guerra por entre os pavorosos ecos e ruídos da comunicação de massas e das redes digitais; mas por detrás deles estão a agir as forças profundas da história e as causas políticas, sociais e económicas que são estruturais e não se desfazem com o passar dos dias.
A aventura iniciada a 24 de fevereiro por Putin e alimentada pela rede de poderes que ele herdou e apurou, de há muito degenerou em tragédia sofrida pelo povo ucraniano e cada vez mais chega em richochete à Rússia. Como todos os dramas, cria uma oportunidade: o povo russo vai poder libertar-se, mas o único modo de ganhar a guerra é Putin perdê-la.
Enquanto existir o regime putinista os russos continuarão privados das capacidades contra os quais o Kremlin combate: um sistema de instituições democráticas com separação de poderes, um poder judicial independente, um parlamento eleito pelo povo, a supremacia do estado de direito, a liberdade de expressão. Estas privações estão a ser brutalmente agravadas pelas medidas tomadas pelo pânico que alastra no Kremlin guerra, mas não são de agora; vêm de trás e de longe.
O passo mais fatal que as precipitou foi a privatização criminosa dos monopólios estatais no tempo do presidente Yeltsin. Conhecemos esse processo através de várias descrições, como a do grande economista e estadista russo Gregory Yavlinsky que chegou a ter 5,5 milhões nas eleições de 1996; ou pelo grande investidor e agora ativista de direitos humanos, William Browder. E convém tê-las presentes.
Os ministros de Yeltsin nos anos 90 criaram um esquema de vouchers anónimos e os chamados leilões de “empréstimos por ações”. Este esquema fraudulento foi criado para transferir quase toda a propriedade do Estado para um pequeno círculo de indivíduos escolhidos a dedo pelos laços com o poder; nasceram os oligarcas. O resultado foi a fusão entre o poder político, a propriedade privada e os negócios, em todos os níveis – desde o Kremlin à administração local.
Os meios de comunicação de massa independentes foram sendo eliminados por Putin a partir do ano 2000 pois representavam um grave ameaça de contestação da legalidade dos bens apreendidos através de ações criminosas. Regrediu a criação de estruturas democráticas e de uma sociedade civil que tem dificuldades em afirmar-se.
Foram essas as bases de um estado corporativo oligárquico-mafioso que Putin herdou e que refinou ao longo de vinte anos de poder, transformando a Federação Russa num petro-estado; é a nação com mais recurso naturais no mundo, gigantescos aliás, mas com uma economia anã, com uns 1,5% do PIB mundial (igual a Itália cujos recursos são incomparavelmente menores) e manchada pelas desigualdades.
A instituição mais importante da democracia- a propriedade privada – não foi respeitada na Rússia pós-soviética: o seu simulacro é a acumulação de riqueza pelos oligarcas, uma riqueza que sempre dependeu dos caprichos do regime e que pode ser redistribuída em qualquer momento. Assim o demonstrou a prisão do grande oligarca Mikhail Khodorkovsky, o homem que em pouco mais de um mês passou de maior bilionário do regime para uma prisão que durou dez anos.
Atualmente Khodorkovsky agita do exterior uma das correntes da oposição ao Putinismo.
Ao longo destes terríveis meses já se viu que a guerra na Ucrânia não terá uma solução geopolítica; os apoios ocidentais são calculados para impedir uma escalada; se o Ocidente quisesse mesmo a paz, aumentava em quantidade e qualidade os apoios de ajuda armada a Puti; assim o faz a Inglaterra, o país que mais memória tem na Europa ocidental do que é resistir a bombardeamentos.
Em contrapartida, as debilidades e contradições económicas e sociais acumuladas em vinte anos de putinismo vieram ao de cima com a aventura iniciada a 24 de fevereiro. Os sinais de degradação acumulam-se: isolamento internacional; incapacidade ofensiva das forças; mobilização seletiva de habitantes que não são russos étnicos; gripagem de sucessivos setores económicos; e aprisonamento de opositores como Alexei Navalny e Vladimir KaraMurza e mais alguns milhares; ou envenenamento como o ministro bielorusso Vladimir Makei, designado sucessor do ditador Lukashenko que morreu “repentinamente” no passado sábado.
Não vai ser fácil mudar que povo russo desperte nem vai lá com entusiasmos, nem petições e nem os apelos à paz funcionam como causas. As estruturas sociais e económicas estão desequilibradas e a gerar desigualdades há mais de vinte anos.
Mas do interior do conflito civil já implantado na Federação Russa hão-se emergir líderes semelhantes aos que se ergueram em outubro de 1905, fevereiro de 1917 e agosto de 1991.
Eles saberão que único modo de o povo russo ganhar a guerra é Putin perdê-la e fazer desaparecer um regime que os privou de propriedade, liberdade e paz.
Amanhã é outro dia
Mendo Henriques
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