A unidade secreta 35555, o batalhão Potok ou os Patriot: os mercenários que querem substituir o Grupo Wagner e que “aparecem como cogumelos”
Há perto de 30 empresas militares privadas a operar na Rússia, apesar de serem oficialmente proibidas. Agora, muitas estão dispostas a lutar para ocupar o vazio deixado pelo desaparecimento de Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner
O cenário era extremamente tenso. Quanto mais tempo passava, mais descontrolada a situação se tornava. No outro lado do mundo, na capital norte-americana, os relatórios que davam conta do número de soldados mortos vítimas de explosivos improvisados no Iraque causava desconforto entre elites políticas e revolta na opinião pública. Era preciso uma solução. A resposta foi uma explosão de empresas militares privadas (chamadas de PMCs), entre as quais a Blackwater, de Erik Prince, que se tornou infame pelas suas ações no Médio Oriente. Faziam o trabalho sujo que o governo americano não queria e, além disso, as suas baixas não contavam como perdas militares. Para Washington, era um bom negócio, para os acionistas da empresa também, mas, para o povo iraquiano, o nome da empresa militar é sinónimo de um rasto de destruição que ainda hoje difícil de perdoar.
Os motivos e os resultados que levaram o Kremlin a empregar uma vasta rede de mercenários na Ucrânia não é muito diferente. O início daquilo que Vladimir Putin chamou de “operação militar especial” não correu como planeado e depressa as chefias militares russas compreenderam que a Ucrânia iria resistir com todas as suas forças e, por isso, o número de militares não era suficiente para atingir os objetivos políticos traçados. Quanto mais se arrastava o conflito, maior era o número de soldados mortos e feridos. Moscovo precisava de uma fonte renovada de soldados, por pouco convencional que fosse.
O resultado foi uma autêntica explosão de empresas militares privadas no país. Existem cerca de 30 grupos paramilitares na Rússia, com dimensões diferentes, mas 70% foram criados depois de 2014. Alguns grupos têm apenas algumas centenas de membros e cumprem funções de segurança e outros têm dezenas de milhares e atuam como autênticos exércitos, como o famoso Grupo Wagner, de Yevgeny Prigozhin, ou o exército de Kadyrov, líder checheno. Quase todos estes grupos estão a construir a sua fama à custa de uma enorme brutalidade no terreno.
“Agora, aparecem como cogumelos. A guerra é um assunto para profissionais ou voluntários. É um assunto extremamente violento que precisa de gente motivada ou por razões patrióticas ou por motivos económicos”, afirma o major-general Agostinho Costa.
Redut ou a unidade secreta 35555
Um desses grupos é conhecido pelo seu nome Redut (ou reduto, em português) e que é, na verdade, uma unidade oculta dos serviços secretos russos.
De acordo com o jornal independente russo Novaya Gazeta, as origens deste grupo remontam à intervenção russa na Síria, onde estes mercenários foram utilizados para oferecer serviços de segurança às instalações da empresa Stroitransgaz, uma companhia de construção criada pela Gazprom, que acabou por ser comprada pelo oligarca russo Gennady Timchenko, antigo amigo do judo de Vladimir Putin. Acredita-se que o bilionário será um dos grandes patrocinadores.
Pelo menos dois mercenários deste grupo foram julgados e considerados culpados em casos de crime de guerra, na região de Kharkiv, na Ucrânia. Os homens raptaram três soldados ucranianos, colocaram-lhes sacos nas cabeças e prenderam-lhes as mãos. Durante três dias, em que privaram os veteranos de comida e bebida, espancaram-nos com martelos e ameaçavam cortar-lhes partes do corpo. Foram sentenciados a 11 anos de prisão.
Uma cópia de um contrato destes mercenários, obtida pela RadioFreeEurope/RadioLiberty, refere que esta é uma empresa de construção registada na cidade de Rostov-on-Don. No entanto, os registos comerciais mostram que tal empresa não existe. O que existe no contrato é a utilização da sigla “LRIPS”, referente ao Laboratório Regional de Investigação Psicológica e Social, uma unidade oculta dos serviços secretos militares russos, do GRU. Oficialmente a unidade militar é conhecida pelo nome 35555.
Estes mercenários têm a sua base em Kubinka, na região de Moscovo, bem próximo do quartel da 45.ª Brigada de Forças Especiais (Spetnaz) Aerotransportadas. Aliás, segundo os anúncios de emprego colocados online pelo grupo, todos os novos membros têm de ter, pelo menos, 25 anos e algum tipo de experiência militar.
Este grupo tem desempenhado um papel fundamental na guerra da Ucrânia e é um dos principais concorrentes do Grupo Wagner. O vice-diretor dos serviços secretos russos, o general Vladimir Alexeyev, decidiu colocar um familiar seu na liderança do grupo, Anatoly Karaziy. Em janeiro de 2022, antes do início das operações, já tinham recrutado vários milhares de soldados das forças especiais e de grupos rivais, incluindo ao Grupo Wagner. Acredita-se que o grupo iria desempenhar um papel fundamental durante os primeiros dias da invasão. Especulou-se que o grupo estivesse encarregue de assassinar a liderança política ucraniana, mas tal não aconteceu nem foi possível confirmar.
Os serviços secretos ucranianos estimam que, atualmente, o grupo conta com aproximadamente sete mil mercenários e é o principal candidato para absorver os vários milhares de experientes combatentes do Grupo Wagner, que ficaram “órfãos” depois da alegada morte de Yevgeny Prigozhin e da restante liderança do grupo, num desastre de avião no dia 24 de agosto.
No início do mês, o Ministério da Defesa russo conseguiu aliciar dois dos principais comandantes do Wagner na Síria para assinarem contrato com o Redut, segundo o Institute for the Study of War (ISW). O think thank americano acredita que o Redut está a ser utilizado pelo governo para tentar absorver as operações do Grupo Wagner em África e no Médio Oriente.
“Os militares do Grupo Wagner não eram as melhores forças da Rússia e a breve trecho terão muitas dificuldades para sobreviver em África”, defende o major-general Carlos Branco.
Existem outras unidades que estão ligadas ao grupo Redut e que, alegadamente, recebem salários através da sua estrutura, mas atuam de forma independente. É o caso do batalhão de voluntários Don, um grupo de voluntários da região do Donbass que, legalmente, estão vinculados ao Ministério da Defesa russo. Estão incorporados no sistema de unidades de reserva do exército russo, conhecidas como BARS, que por sua vez estão espalhadas um pouco por todo o território ocupado. O líder desta unidade de voluntários é Aleksandr Borodai, um antigo líder separatista do Donbass que se transformou em deputado russo.
Gás, dinheiro e pornografia
Durante o pico da insurgência na guerra do Iraque, os Estados Unidos empregavam, pelo menos, 100 mil mercenários de várias empresas privadas, sendo a maior de todas a Blackwater. Esta empresa, formada por um antigo membro das tropas de elite Seals, tinha profundas ligações aos serviços secretos americanos e acesso a alguns dos grupos mais restritos do governo americano. Estas conexões fizeram com que a empresa fosse generosamente recompensada com contratos milionários.
Mas e se, em vez de procurar garantir contratos milionários a empresários que podem vir a ser um perigo para a elite política, o governo utilizasse as suas próprias empresas estatais para criar grupos militares privados? É esse o caminho escolhido pela liderança da Gazprom, o gigante estatal do gás natural. A empresa nunca o reconheceu, mas uma investigação do Financial Times descobriu as ligações da companhia energética a, pelo menos, dois batalhões, que começaram a ser recrutados em agosto de 2022.
Um destes grupos é conhecido por batalhão Potok, é composto por antigos profissionais da Gazprom e faz parte de uma rede de unidades militares “semi-independentes”, que estão a apoiar as ações ofensivas do exército russo. À semelhança do que aconteceu na invasão americana no Iraque, estes grupos permitem ao Kremlin encontrar uma alternativa à sua necessidade de recrutar soldados sem ter de lançar uma nova vaga de mobilização forçada. Segundo as palavras de Prigozhin, existem múltiplas unidades militares de segurança a operar sob ordens da Gazprom.
E a melhor forma de aliciar esta mão de obra é através dos salários. Segundo a informação encontrada num site de procura de emprego, o Headhunter.ru, estas empresas oferecem um salário dez vezes superior ao salário médio russo. Os valores atingiam os 700 mil rublos por mês (cerca de 9.200 dólares). As próprias campanhas de recrutamento são também cada vez mais criativas. No passado mês de março, o Grupo Wagner começou a publicar ofertas de emprego no site pornográfico Pornhub. Tudo isto enquanto as empresas militares privadas são oficialmente proibidas na Rússia.
“A utilização de mercenários de empresas privadas na guerra é uma forma de recrutamento encapotado. São parte da estrutura militar russa”, afirma o major-general Agostinho Costa.
Um patriota e um goblin
Alguns destes grupos têm estreitas ligações à liderança política. O Convoy é o projeto pessoal do governador russo da província ocupada da Crimeia, Sergey Aksyonov, um homem de negócios nascido na Moldova, com ligações ao mundo do crime que lhe valeram a alcunha de “goblin”. Aksyonov decidiu criar a empresa militar no final de 2022. Pouco se sabe quanto à natureza da organização ou como é que o grupo está estruturado, mas tem lançado vastas campanhas de recrutamento na península da Crimeia e na região de Kherson. Segundo uma entrevista a um mercenário publicada pelo site iStories, estes homem recebem um salário de 2.500 dólares mensais e têm a promessa de receber terras na Crimeia caso cumpram um ano de contrato.
Aksyonov não criou o grupo Convoy sozinho. Sem conhecimento militar, foi buscar alguém com a experiência necessária para o fazer. A pessoa escolhida foi um dos comandantes mais próximos de Prigozhin, Konstantin Pikalov, o homem responsável pelas operações do Grupo Wagner em África. Esta movimentação pode significar que outros grupos podem estar de olho nas lucrativas operações do Wagner em África.
Mas talvez nenhum outro grupo tenha tantas ligações à mais alta cúpula política russa como o grupo Patriot. Esta empresa de mercenários foi fundada em 2018 e acredita-se que tem profundas ligações ao ministro da Defesa Serguei Shoigu, de acordo com as sanções aplicadas pelos Estados Unidos da América logo após a invasão. Com o lema “morrer com dignidade”, muitos sugerem que esta companhia foi criada em resposta à crescente popularidade do Grupo Wagner. Do que se sabe acerca da estrutura desta organização, o grupo Patriot é o mais parecido com as tradicionais empresas de mercenários ocidentais, como a Blackwater. Este grupo está divido em dez departamentos, cada um com as suas funções.
Enquanto servirem as funções do Kremlin, estas empresas militares privadas vão continuar a operar na Ucrânia e um pouco por todo o mundo, com resultados catastróficos para as populações civis, tal como com o grupo Blackwater. No entanto, a longo prazo, podem vir a tornar-se um problema para o Kremlin.
“Desde que não sejam ultrapassadas linhas vermelhas, o Estado está bem com eles porque são benéficos. Mas se interferirem nas decisões políticas das partes interessadas, podem ser encerrados. Isso vai depender do decorrer da guerra, mas a cada derrota no terreno o Estado russo perde cada vez mais controlo para estes grupos armados“, acredita Anton Shekhovtsov, diretor do Centro para a Integridade Democrática, numa entrevista à Euronews.