Ana Drago: a Esquerda tem “uma certa fraqueza na capacidade de disputar a opinião pública”

A socióloga é a responsável pela pasta da Habitação da Causa Pública, um think tank de esquerda fundado no final de setembro. Este novo projeto quer disputar a hegemonia com a direita e mostrar a quem trabalha que os programas de esquerda são capazes de mudar a sociedade.

Entrevista
23 Novembro 2023

Não quer ser um partido nem um movimento de esquerda. O seu objetivo pode ser até mais desafiador e ambicioso: juntar várias tendências de reflexão à esquerda para se desenhar políticas públicas para um futuro “progressista e transformador”. E a conclusão é-lhe óbvia: falta à esquerda um “horizonte de futuro”, mas também capacidade em mostrar que as propostas de esquerda são, além de generosas e positivas, possíveis.

A Causa Pública, um novo think tank de esquerda fundado no final de setembro, quer disputar a hegemonia com a direita e mostrar a quem trabalha que os programas de esquerda são capazes de mudar a sociedade, de que “o futuro não é a mera repetição do presente no melhor dos casos”. Mas há obstáculos no caminho: as “instituições de propaganda de um determinado programa político, fortemente subsidiados pelas grandes empresas e o grande capital”. Daí que a disputa da hegemonia seja um dos objetivos da Causa Pública.

“Queremos recriar uma vontade progressista, transformadora de um modelo de desenvolvimento para o futuro. Para não ficarmos espartilhados no debate sobre o quotidiano”, disse a socióloga Ana Drago em entrevista ao Setenta e Quatro.

Mas para isso, continua, há que reunir todo o “conhecimento desperdiçado” no campo da esquerda, “juntá-lo para uma reflexão e construir-se um projeto de desenvolvimento progressista para o país”. O think tank conta com personalidades como Paulo Pedroso, Alexandra Leitão, Ricardo Paes Mamede, Daniel Oliveira, João Cravinho, Manuel Carvalho da Silva, Pedro Delgado Alves, Fernanda Rodrigues, Luísa Veloso, João Teixeira Lopes, entre tantos outros.

Ana Drago é a responsável pela pasta da Habitação da Causa Pública e o diagnóstico sobre esta temática, uma das mais urgentes para quem trabalha em Portugal, está mais que feito: “os custos de habitação são uma sentença de empobrecimento”, tornando-se “um enorme elemento de desigualdade”. “A segregação residencial é um facto consumado. A habitação suga a maioria do rendimento dos segmentos mais jovens e mais carenciados da população. Temos uma cidade cada vez mais polarizada. Estamos num estranho momento em que, subitamente, quem trabalhar na cidade e faz funcionar a economia metropolitana não consegue viver aqui”, alerta a socióloga.

Quais os próximos passos da Causa Pública? Está a dar os primeiros, portanto “pedimos alguma paciência”, reage Ana Drago. “Mas temos um horizonte.”

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Na declaração de intenções da Causa Pública diz-se que se exigem “mais dos debates à esquerda”, que faltam programas “exequíveis e progressistas” e que a esquerda tem “a responsabilidade de construir uma sociedade melhor, concebendo e executando reformas estruturais”. A Causa Pública vem preencher lacunas no espaço político à esquerda?

A Causa Pública nasce de um diagnóstico partilhado entre várias pessoas. O debate político está preso ao situacionismo. Estamos demasiado enredados a discutir o quotidiano, a gerir determinados conflitos, a medir diferenças e diferendos. No momento em que nos aproximamos dos 50 anos do 25 de Abril, falta um horizonte de futuro. Não há modelo de desenvolvimento.

ana drago
Socióloga e doutora em Estudos Urbanos, antiga deputada da Assembleia da República, Ana Drago é uma das fundadoras da Causa Pública, associação cívica que junta diferentes perspetivas da esquerda portuguesa.
[Foto: Rafael Medeiros | Esquerda.net] com a devida vénia.

Ficámos circunscritos ao impacto avassalador da crise da troika. A “geringonça” procurou responder em parte a essa crise, mas o debate político ficou marcado por uma restrição levantada pela direita. A direita ganhou na configuração do terreno. Parte significativa das propostas feitas à esquerda podem ser encaradas pela opinião pública como sendo generosas e positivas, mas não como possíveis.

Resolver isso passa por uma qualificação das propostas políticas. A ideia é conceber, em torno das políticas públicas, tomando-as como o grande instrumento da democracia, um alargamento do espaço de debate. E criar ou recriar a credibilidade de uma ideia de transformação progressista da sociedade portuguesa.

Uma ideia de desenvolvimento, de que o futuro não é a mera repetição do presente no melhor dos casos, do “isto só pode piorar”, mas que pode ser algo melhor e transformador. Existe no campo político de esquerda — nas organizações, nos partidos, nos sindicatos, na sociedade civil, na academia, nos serviços públicos, no setor privado — muito conhecimento desperdiçado. Queremos reunir esse conhecimento, juntá-lo para uma reflexão e construir um horizonte de transformação. Um projeto de desenvolvimento progressista para o país.

Com que tipo de contributos?

Tem de haver uma capacidade de produção de conhecimento sobre, por exemplo, serviços públicos, economia nacional, exigências de uma transição [energética] justa. Pegar nisso, conseguir configurá-lo de uma forma que seja legível pelo cidadão comum, torná-lo facilmente acessível. E provocar reflexão e debate sobre isso. Juntar conhecimento e participação, construindo posições políticas. E força política, porque isto também se faz de relação de forças.

Se fosse só o conhecimento… Há muito conhecimento na academia, mas precisamos de juntar conhecimento e ação. Adquirir conhecimento e criar espaços de participação é, em si próprio, uma forma de reconfigurar o debate político em torno das políticas públicas.

A Causa Pública surge em resposta a fenómenos como o think tank neoliberal Instituto Mais Liberdade ou a compra de meios de comunicação social por fundadores desse think tank? Isto é, quer disputar a hegemonia?

A vontade é essa. Temos vindo a assistir à criação de supostos institutos que são instituições de propaganda de um determinado programa político, fortemente subsidiados pelas grandes empresas e o grande capital. Temos um conjunto de fundações que também vão intervindo no debate político sobre a questão das políticas públicas. E à esquerda há uma certa fraqueza na capacidade de disputar a opinião pública. Mas, acima de tudo, de dar argumentos à opinião pública. É isso que mais falta.

As pessoas têm a perceção que há qualquer coisa errada com os gráficos do +Liberdade, mas têm dificuldade em procurar outros dados ou perceber que há outras maneiras de olhar para o problema. A Causa Pública deve fornecer factos e argumentos para disputar esse campo. A vontade de existir no espaço público, de não ser mero academismo, vem daí. É uma intenção. Não temos doadores tão generosos para fazer isso com tanta facilidade, mas vai-se fazendo com ativismo, militância e participação. Há-de ir-se fazendo.

“As pessoas têm a perceção que há qualquer coisa errada com os gráficos do +Liberdade, mas têm dificuldade em procurar outros dados ou perceber que há outras maneiras de olhar para o problema.”

Na década que passou vimos na Europa um crescimento das alternativas políticas que aderiam ao chamado populismo de esquerda. Essa estratégia, a nível institucional, parece ter falhado. Construir um projeto como o Causa Pública é assumir que falhou? Ou é uma tentativa de o ultrapassar?

O debate sobre o populismo de esquerda, animado sobretudo pela [cientista política pós-marxista] Chanttal Mouffe, deve acontecer. Há a distinção entre o populismo diádico e populismo triádico. Um seria de esquerda e o outro de direita. Neste último os “de cima” pegam nos “do meio” e dizem que a culpa é dos de baixo. O de esquerda diz que há dois campos e a culpa é do campo de cima, das elites.

Não tenho uma visão fechada sobre isso. A Causa Pública não é, claramente, um instrumento de construção desse discurso mais popular. Não gosto de lhe chamar populista, mas popular. No campo da esquerda existe espaço para diferentes instrumentos. Nenhum deles é único nem elimina a existência de outros. Há várias formas de militância política e ativismo bastante radicalizadas, e têm o seu espaço e o seu papel.

Há um campo de estruturação e de propostas políticas mais centradas numa lógica de intervenção das políticas públicas que ainda não estava preenchido. A Causa Pública vem responder a isso. Não significa que seja melhor ou pior que outros instrumentos da esquerda. É mais um. Perante as enormes dificuldades que a esquerda está a ter no campo político, vários caminhos devem ser tentados ao mesmo tempo. E uma coisa não elimina a outra. Não tem de ostracizar outros elementos ou atores à esquerda. São formas diferentes de intervenção. Acho que são cumulativas. Devemos tentar e ver o que acontece.

Quando falam em políticas públicas, este esforço também é convocado para influenciar a política parlamentar, quiçá inserir-se na disputa eleitoral? 

Não é uma construção com um propósito eleitoral. Disso cuidam os partidos. Ao contrário do que é dito, há bastante programa no campo político partidário à esquerda, há muitas propostas. Umas mais detalhadas, outras menos.

Na Causa Pública, precisamente porque é feita de pessoas com diferentes percursos (algumas até militantes de partidos diversos), é possível estruturar algumas ideias mais latas, pensar para lá do horizonte eleitoral, debater com os diferentes participantes políticos. A ideia é criar uma agenda transformadora que funcionaria sob o ideal de um mecanismo muito popular nos anos 2000: o “copyleft”; toda a gente pode levar ideias daqui.

Se construirmos boas propostas, boas agendas que consigam criar esse compromisso transformador num espaço alargado, podem ser assumidas por diferentes atores políticos do campo partidário. Se não o quiserem fazer, também qualificam o debate democrático. Queremos recriar uma vontade progressista, transformadora de um modelo de desenvolvimento para o futuro. Para não ficarmos espartilhados no debate sobre o quotidiano.

Sobre políticas públicas, temos de falar da maioria absoluta e do apelidado “costismo”. Falta de políticas públicas ou negligência dos serviços públicos. Desde a geringonça até aqui, como é que se deixou chegar a este ponto?

Não posso falar em nome da Causa Pública, até porque agrega diferentes posições e opiniões à esquerda. Pessoalmente, sou muito crítica em relação à orientação política seguida pelo Partido Socialista desde que assumiu a maioria. Tenho-o expressado de forma clara, não é novidade para ninguém.

O PS achou que a sua sustentação política passava por não iniciar qualquer plano sob uma lógica de reforma nos diferentes setores públicos que o necessitavam. Esses setores estão praticamente congelados e a funcionar em sobrecarga desde o tempo da troika: SNS, o ensino público, as políticas para a investigação científica, as políticas de combate à pobreza e o modelo de desenvolvimento económico.

Não foi até agora capaz de contrariar o vício que a economia portuguesa tem de se sustentar com baixos salários. O último protagonista é o setor do turismo. Esta ideia de rentabilizar o país através de trabalho barato e de vendas de casas a estrangeiros. Isso cria um problema grave para o futuro do país. Agora pode parecer crescimento, mas é na verdade uma divergência em relação ao modelo de desenvolvimento económico no contexto europeu. O PS abdicou de políticas transformadoras, reformistas, que obviamente causam algum mal-estar em alguns setores da sociedade. É necessário voltar a ganhar vontade política para as fazer.

“Se é verdade que muita gente diz, e com razão, “o país é pobre”, temos de perceber que dizer isso tem um efeito de ocultação de que também é desigual. Essa desigualdade é uma das razões da sua pobreza.”

Dentro da Causa Pública haverá outras interpretações, mas todos sentimos necessidade de um certo horizonte político. Creio que, no campo político mais à esquerda do PS, é difícil encontrar alguma lógica de alternativa referente ao modelo de desenvolvimento económico a aplicar, porque há uma visão muito crítica daquilo que tem sido o custo da integração no euro para a economia portuguesa. E é verdade, o euro foi particularmente castigador da economia nacional, mas não temos uma estratégia política definida sobre isso.

Dentro dos constrangimentos que existem, e são muitos e significativos, em relação à capacidade do Estado em intervir no mercado, em ter uma lógica de planeamento de proposta económica, etc., há, apesar de tudo (e o Ricardo Paes Mamede teve uma intervenção sobre isso no fórum [da Causa Pública] no último fim de semana), uma margem de liberdade sobre a atuação do Estado, quem tem a ver com essa lógica de transformação do perfil da economia portuguesa e uma lógica de qualificação dos serviços.

Se é verdade que muita gente diz, e com razão, “o país é pobre”, temos de perceber que dizer isso tem um efeito de ocultação de que também é desigual. Essa desigualdade é uma das razões da sua pobreza. É preciso olhar para tudo isto: relações de desigualdade, relações de poder, a necessidade de transformar e modernizar os serviços públicos, os salários, os modos de trabalho, a política de habitação. Há que ter um horizonte de qualificação e especialização da nossa economia.

Não nos faltam campos para construir estas agendas e são todas absolutamente urgentes. Esta sensação da maioria absoluta que nada faz para não ter qualquer tipo de reação desqualifica a democracia e cria exasperação entre a esquerda. Isso não é positivo.

É preciso politizar, de novo ou de raiz, a desigualdade?

Sem dúvida, sempre. A desigualdade é o lugar de incompletude do projeto democrático. Dá-nos a percepção que os mecanismos democráticos, de igualdade de oportunidades, não estão a funcionar. A reprodução social da pobreza e das desigualdades em Portugal é um dado assente. É um facto sem discussão. Continuamos a olhar para as políticas públicas nessa capacidade de combater essa desigualdade.

Estuda e investiga o urbanismo, as políticas de habitação e a financeirização da habitação. Como vê neste momento — até mesmo em termos de espaços físicos — o esvaziamento dos espaços de debate político nas cidades?

Isso é sentido pelas diversas pessoas que tentam organizar debates, encontros, reuniões. A cidade mercantilizou até os espaços públicos. Fazer hoje uma reunião num sítio qualquer, mesmo de uma instituição pública, na cidade de Lisboa, é muito difícil. Os contextos suburbanos foram sempre construídos como contextos suburbanos. Ou seja, numa lógica de polarização: dormir no subúrbio e trabalhar no centro. Os próprios subúrbios têm dificuldade de encontrar e produzir esses espaços.

A área metropolitana de Lisboa está a sofrer um processo de gentrificação transnacional que muda completamente a lógica das relações sociais nesse espaço. A segregação residencial é um facto consumado. A habitação suga a maioria do rendimento dos segmentos mais jovens e mais carenciados da população. Temos uma cidade cada vez mais polarizada. Estamos num estranho momento em que, subitamente, quem trabalhar na cidade e faz funcionar a economia metropolitana não consegue viver aqui.

Como é que as pessoas que servem refeições no centro de Lisboa podem viver a 80, 120 150 quilómetros? Conseguirão, com os maus salários praticados pelo turismo e hotelaria, pagar uma casa na AML? Estamos numa situação de absoluta emergência social.

Parece que toda a gente sente essa emergência na pele ou pelo menos consegue ver que ela existe. Mas parece não haver vontade política para a confrontar: não vai haver travão às rendas. Depois, temos horas de analistas com tempo de antena para dizer que tem de ser assim. É possível combater esta hegemonia?

Não só é possível, como é urgente. Entendemos esta estranheza: como é que há um conjunto de senhorios que praticam preços de arrendamentos completamente discrepantes em relação aos salários praticados no país. Há um problema significativo aqui. Ou há um conjunto de portugueses com extraordinária riqueza ignorada pelos dados oficiais — e haverá, certamente, mas não a esse ponto — ou então temos tido, ao longo dos anos, um conjunto de procuras externas que vêm com um poder de compra muito superior ao português.

Há um problema de profunda desigualdade. Isso combate-se regulando o mercado. A questão da compra de imóveis por não-residentes é muito importante. No contexto europeu, enfrenta dificuldades. Enfim, temos o mercado único. É preciso explorar aquilo que é a legislação europeia para perceber o que é possível fazer, mas há que regular de maneira a reduzir, afirmando-o claramente, as rentabilidades existentes.

Há uma coisa que a direita nunca consegue explicar. A direita diz que é preciso construir mais. Dar incentivos à construção, que alegadamente não existem no mercado. Como? Nunca houve rentabilidades tão elevadas na habitação como hoje em dia. Essas rentabilidades são tidas à conta da procura estrangeira. E, portanto, é preciso fazer uma regulação que as reduza. E isso significa regular o arrendamento, do alojamento turístico, da compra por não-residentes, dos fundos de investimento. Tudo isso tem de ser feito. Já tinha de ser feito ontem.

“Temos uma cidade muito bonita, muito agradável, com edifícios recuperados. Mas na rua as pessoas dizem: ‘isto não é para nós’.”

Mas as cidades não estão melhores. Há edifícios recuperados, fachadas limpas, lojas abertas.

As cidades não estão melhores, estão mais desiguais. Em particular, acho que são castigadoras para as novas gerações. Para os “outsiders” do mercado. Quem tentou entrar no mercado da habitação nos últimos 5, 6 anos, ficou com custos de habitação muito mais elevados. Um dos indicadores que nos falha quase sempre… Temos aquele indicador que nos aparece sempre da sobrecarga dos custos habitacionais, a de uma percentagem sobre o rendimento. Depende de qual é o rendimento à partida.

Se eu tiver na mão €2500 líquidos e 40% disso forem custos de habitação, fico com muito mais dinheiro disponível do que quem ganha €820 e tem só 25% de custos de habitação. É necessário percebermos qual o rendimento disponível das pessoas depois dos custos habitacionais e só aí é que poderemos ter uma verdadeira noção sobre o que come o acesso à habitação na disponibilidade das famílias para fazer face aos custos com a alimentação, os transportes, a energia, tudo.

A habitação tornou-se um enorme elemento de desigualdade. Há um conjunto significativo de pessoas em Portugal que estão protegidas, mesmo não tendo rendimentos muito elevados, seja porque já pagaram a sua casa ao banco, ou já era sua. E há um outro conjunto da população, cada vez maior, em particular os jovens, para quem os custos de habitação são uma sentença de empobrecimento. Temos de saber responder a estes diferentes grupos.

Temos uma cidade muito bonita, muito agradável, com edifícios recuperados. Mas na rua as pessoas dizem: “isto não é para nós”. À medida que Lisboa foi sendo recuperada, fui-me cruzando com pessoas que diziam isso. As cidades democráticas têm de ser misturadas. Isso é fundamental para a vivência quotidiana da democracia. O que a cidade permite em termos de politização é nós, numa experiência de convivência, vermos diferença, mas também algum grau de desigualdade. Vermos como os outros vivem sinaliza-nos e torna-nos sensíveis às vidas dos outros.

Lisboa manteve durante muito tempo bolhas de classes populares no centro e essa mistura acontecia. Na Estrela, no Príncipe Real, em São Bento havia casas bastante degradadas e que precisavam de reconstrução. Mas as pessoas viviam lá e essa mistura social fazia uma cidade mais democrática.

A partir da lei Cristas [em 2012] tivemos a expulsão desses segmentos populares, despejados em nome da requalificação do edificado, e quem está a entrar tem rendimentos muitíssimo superiores. Todo o mercado de requalificação urbana foi virado para pessoas com rendimentos elevados, puxado pelas procuras externas no momento da crise, e agora virado para o arrendamento de portugueses com elevados rendimentos, mas também estrangeiros em igual situação. Isso cria um enclave no centro da cidade. A perceção da maior parte das pessoas é essa: a cidade está muito bonita, mas não é para elas.

Faz-me impressão que António Costa e Fernando Medina, que foram presidentes da Câmara Municipal de Lisboa, não tenham essa perceção, porque Lisboa foi o principal centro onde isso aconteceu. Medina, já em 2017, deveria ter percebido isso, durante a sua campanha eleitoral, quando a habitação foi um dos debates fundamentais, sobretudo o alojamento local e as procuras externas. É preciso criar instrumentos que permitam acesso a habitação acessível e misturada no contexto da cidade. Não é só nos subúrbios, é em todo o lado.

Falando em bolhas populares, é algo que se pode verificar ainda em algumas partes de Lisboa, mas agora com imigrantes que mantêm vivos os aspectos democráticos de alguns bairros frente à especulação imobiliária, ainda que sujeitando-se a condições habitacionais indignas e insalubres. Parece que há uma Lisboa para os estrangeiros muito ricos e outra para os muito pobres, que trabalham para servir os primeiros. A Causa Pública está sensível às questões das comunidades imigrantes?

Temos um número reduzido de migrantes afluentes, com bastante dinheiro, que vem viver para os centros das cidades, as zonas mais aprazíveis, Lisboa, Porto e Algarve. E depois temos um volume significativo de migrantes que entram no país para ser trabalho barato. No contexto de Lisboa, vivem nas áreas centrais em casas sobrelotadas. Vivem em zonas rurais, como Odemira, onde trabalham nas estufas, no trabalho intensivo. Há estas misturas.

“Para os jovens, os custos de habitação são uma sentença de empobrecimento.”

É um pouco significativo que a extrema-direita em Portugal tente fazer o seu discurso nacionalista contra os migrantes pobres. A dimensão de integração social na sociedade portuguesa desses imigrantes pobres é fundamental na defesa da democracia portuguesa contra essas teses racistas e xenófobas. A questão das migrações, nas suas diferenças, a migração dos tais estrangeiros ricos com o problema da habitação, a migração dos estrangeiros pobres para o trabalho intensivo, e a saída significativa dos mais jovens, mais qualificados, por causa dos baixos salários, procurando alternativas no estrangeiro, é hoje uma dimensão fundamental de como a ausência de políticas que enfrentam o modelo económico português que tem de ser abordada.

Também tenho de dizer isto: somos um conjunto de pessoas que formou uma associação cívica que está a dar os primeiros passos. Pedimos alguma paciência. Não conseguimos responder a tudo no curto-prazo. Mas temos esse horizonte. Queremos trabalhar todos estes temas.

Temos a perceção que há uma enorme dificuldade em fazer cortes nos temas: como é que falamos de transição energética sem falar de modelo económico, como é que falamos de modelo económico sem falar de migrações, como é que falamos de migrações sem falar de habitação, como é que falamos de habitação sem falar sobre… As coisas estão todas ligadas umas às outras. Queremos compor esse puzzle. Ir colocando as peças no lugar certo, para que essa ideia de modelo de desenvolvimento multidimensional (democracia, clima, economia, políticas sociais, participação política) se torne num horizonte transformador e progressista. É a nossa intenção.

* Com a devida vénia a Causa Pública.

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