Cerca de 600 homens integraram três companhias de comandos africanos na Guiné-Bissau, uma tropa de elite única exclusivamente constituída por negros que serviu Portugal na Guerra do Ultramar. Com a independência, foram abandonados pelo Exército português, que os deixou para trás. Foram perseguidos, torturados e muitos fuzilados.
Cinquenta anos depois, as suas versões da história foram ouvidas e reunidas num projeto de tese de doutoramento e num documentário. Os poucos ainda sobreviventes reivindicam direitos que lhes tinham sido assegurados e nacionalidade portuguesa.
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O governo português pagará ainda as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tenham direito quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivos de serviços prestados às Forças Armadas portuguesas. [...] O governo português participará num plano de reintegração na vida civil dos cidadãos da República da Guiné-Bissau que prestem serviço militar nas Forças Armadas portuguesas e, em especial, dos graduados das companhias e comandos africanos."
Este foi o compromisso assumido no Acordo de Argel, que reconhece a independência da Guiné-Bissau, assinado a 26 de agosto de 1974 pelos então ministros dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares, e da Coordenação Internacional, António de Almeida Santos.
Dos cerca de 400 mil africanos negros que, como portugueses que eram na altura, combateram do lado das Forças Armadas Portuguesas (FAP) contra os movimentos de libertação em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau, o Ministério da Defesa Nacional assume apenas o reconhecimento de "direitos inerentes, consoante cada caso concreto", a "800 militares de origem africana, que combateram pelas Forças Armadas Portuguesas na Guerra do Ultramar, qualificados como deficientes militares".
O Gabinete de João Gomes Cravinho não especifica ao DN nem o país de origem nem a que unidades pertenciam.
Julião Correia, Luís Sambu, Mário Sani, Bubacar Djaló, Lamine Camará e Paulo Rodrigues (fotos em cima, da esquerda para a direita) não estão entre eles.
As suas vozes representam as de uma maioria de ex-combatentes portugueses (na altura era essa a sua nacionalidade) e trazem uma história que não é a dos vencedores, nem sequer a conveniente para as narrativas comuns sobre o papel desempenhado por estes homens, que integraram uma unidade de elite do Exército português promovida pelo general António de Spínola - a mesma a que pertenceu o mais conhecido comando africano na Guiné,
Marcelino da Mata, falecido em Portugal no início deste ano.
Para a Guiné independente foram considerados traidores e não houve contemplações. Para os revolucionários de abril eram um incómodo e foram atirados para o lado sombrio da história.
Sorriso e sangue
Os testemunhos deste documentário fazem parte de um grupo de cerca de três dezenas de ex-comandos que foram ouvidos na Guiné-Bissau por Sofia da Palma Rodrigues, doutoranda em
Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, no âmbito de um
projeto de tese sobre este tema, e por Diogo Cardoso, ambos jornalistas da
revista digital Divergente, onde será publicado um documentário completo nos meses de outubro, novembro e dezembro (ver entrevista ao lado), um trabalho que contou com o
apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundação para a Ciência e Computação e do CES.
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Por ti, Portugal, eu juro!" - Memórias e testemunhos dos comandos africanos da Guiné (1971-1973) traz novas versões sangrentas e de horror, sem cravos, para a história de uma romântica "revolução sem sangue".
Os seus testemunhos são um murro no estômago e obrigam mesmo, a quem ainda não o tinha feito, a olhar de outra forma para este período da história, quando Spínola assumiu o cargo de governador-geral daquele país e comandante-chefe das FAP.
No seu plano, ""Por Uma Guiné Melhor", prometeu melhores condições de vida aos então portugueses negros daquele território, para que deixassem de aderir à causa do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).
Na linha da frente deste projeto, a que Cabral chamou política de "sorriso e sangue", estavam os comandos africanos, combatentes escolhidos entre os mais fortes para as missões mais complexas de contrassubversão, como braço armado do desígnio de Spínola que promovia a imagem de uma nação integradora e multirracial.
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Sou português, em todos os sentidos sou português. Juro!", declara para a câmara Julião Correia, soldado da 1.ª Companhia de Comandos Africanos da Guiné, de braço erguido. "Eu não jurei duas bandeiras, apenas uma", afirma Lamine Camará, da 2.ª Companhia, que não esconde a sua revolta: "Sinceramente, arrependo-me de não ter ido para a guerra de libertação. Virei-me contra a minha família, meus irmãos. E afinal por quem lutei? Lá no Ministério da Defesa puseram miúdos que nada fizeram pelo país. Eu fiz mais por Portugal do que aquela gente que está lá", afirma indignado.
"Abandonaram-nos. Sinceramente, abandonaram-nos completamente. Ficámos filhos, sem pai e sem mãe [...]. Portugal tem todos os nossos documentos [...]. Sou português para sempre. O meu sentido é português. Porque jurei a minha pátria, sou português", declara, de olhos embargados de lágrimas, Mário Sani, que foi perseguido depois de 1975 e esteve fugido durante mais de três décadas em vários países da África Ocidental.
"Encontrámo-nos com Mário Sani pela primeira vez em 2018. Regressara há pouco de uma fuga que durou mais de 40 anos, depois de ter sido perseguido e preso pelo PAIGC em 1975. O seu corpo magro e periclitante estava presente, mas a vida do homem fardado, jovem e forte, que nos fitava da fotografia pendurada na parede, parecia ter sido sugada", é contado no documentário.
Sem escolha ideológica
Sani lembra-se bem do dia em que viu Spínola pela primeira vez. Segundo o trabalho de Sofia Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, "tinha acabado de ser ferido numa perna quando o governador o foi visitar ao hospital. Disse-lhe para ter coragem, defender a terra, defender a bandeira, e até lhe apertou a mão - a mesma mão a que, anos mais tarde, seriam arrancadas as unhas como castigo pelo serviço prestado a Portugal".
Mário Sani contou-lhes que o general do monóculo "falava sempre muito bem. Dava-nos coragem durante a instrução militar. Não sabíamos que estávamos a ser enganados, que era mobilização. Quando nasces nas mãos de alguém, pensas que tudo o que essa pessoa te diz é verdade, ou não? Não conhecia a finalidade da guerra, achava só que o PAIGC era o agressor. Só depois da independência vim a perceber", recordou.
Sani, Julião Correia e Lamine Camará morreram já depois de terem dado o seu testemunho, antes de receberem, ou as suas famílias, qualquer apoio português.
"A maioria destas pessoas não fazia uma escolha ideológica. As pessoas eram empurradas para um lado ou para o outro. Ou porque viviam em Bissau e iam para as FAP, ou porque estavam no campo e iam para o lado do PAIGC. Não era uma escolha", assinala Sofia Palma Rodrigues.
Esta tarde, este trabalho vai ser apresentado numa sessão privada no Museu do Aljube ("porque tem uma bandeira da memória e este trabalho é sobre a memória") e vão estar presentes dois ex-comandos, Abdulai Djaló, 73 anos, e Juldé Djaguité, 71, das 1.ª e 2.ª Companhias, respetivamente. Ambos residentes atualmente em Portugal.
"O pai de Abdulai era perseguido pela PIDE e ele entendeu que a melhor forma de defender a vida da família era ir para os comandos. Depois do 25 de Abril, quando conseguiu vir para Portugal e enquanto esperava a ajuda da Associação de Comandos, dormiu numa cadeira encostada a um prédio num bairro de Chelas. Depois foi viver para uma casa onde estavam outros antigos tropas. Passados dois ou três anos, a Associação de Comandos conseguiu-lhe um lugar como porteiro num parque de campismo, mandou vir a mulher e os filhos e viveram vários anos numa tenda. Hoje tem um grande orgulho de ter conseguido comprar uma casa", conta Sofia Palma Rodrigues.
Juldé era furriel e teve de fugir depois do 25 de Abril para o Senegal, onde esteve "bastantes anos" escondido", até que conseguiu que a embaixada portuguesa o autorizasse a vir para Lisboa. "É muito consciente dos seus direitos. Trabalhou cá e, com a ajuda da Associação de Comandos, num processo que demorou anos, tem uma reforma. Mas ainda assim é de soldado, e não de furriel, que era o posto dele, que não lhe foi reconhecido", assinala a autora.
Amanhã, dia 30, será feita uma apresentação pública do documentário junto ao Padrão dos Descobrimentos, em Belém.
Contactada pelo DN, a
Associação de Comandos recorda que em 1977 conseguiu resgatar "cerca de 90 militares africanos que tinham fugido para o Senegal para escapar aos fuzilamentos". O presidente José Lobo do Amaral assinala "as enormes dificuldades e sofrimento que estes homens passaram".
Sublinha que a Associação "foi dando algum apoio para a integração" destes militares em Portugal, mas que "só hã cerca de 12 anos conseguimos resolver o problema da nacionalidade a um número razoável deles".
Lobo do Amaral defende que "todos estes ex-combatentes" recebam "os seus direitos, principalmente no que diz respeito ao apoio na doença que, com a idade já avançada e as mazelas da guerra, será o mais urgente"
O coronel
Raul Folques foi o último comandante do Batalhão de Comandos da Guiné, que integrava as três companhias de comandos africanos. "É urgente ouvir estas pessoas e fazer justiça", afiançou ao DN.
Este oficial foi destituído do seu posto logo após o 25 de Abril e entende que "as reivindicações de todos estes ex-comandos são válidas. Foi feita uma grande injustiça a estes militares, que se consideravam e consideram ainda portugueses. Foram humilhados, ostracizados, muito maltratados a todos os níveis. Roubaram-lhes a nacionalidade, e esse é um direito que nunca lhes devia ter sido retirado", assevera.
Nos últimos anos, a Associação dos Filhos e Viúvas dos Antigos Combatentes Portugueses da Guiné tem organizado manifestações à porta da Embaixada de Portugal em Bissau a reivindicar o pagamento de pensões de sangue e invalidez. É tarde demais para estas pessoas? "Não é. Elas não sentem que seja tarde demais. Enquanto estiverem vivas, se forem reconhecidas já é bom", diz Sofia Rodrigues.
- Com a devida vénia ao DN e a
valentina.marcelino@dn.pt
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